Pantanal busca recuperação em meio a incêndios e secas
“No Pantanal ninguém pode passar régua. Sobremuito quando chove. A régua é existidura de limite. E o Pantanal não tem limites”. As conhecidas palavras do poeta pantaneiro Manoel de Barros expressam muitas características desse bioma que se esparrama em um mosaico de múltiplos ambientes para formar uma das maiores planícies alagáveis do mundo, com uma beleza impressionante. O Pantanal é considerado por muitos o “santuário da biodiversidade”. Vive da resiliência em meio as inundações e as secas, em um ciclo regido pela água e pelo fogo, cujo histórico data de pelo menos 12 mil anos.
Destacado como Patrimônio Nacional pela Constituição e declarado Patrimônio Natural Mundial e Reserva da Biosfera pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o Pantanal ganhou até data para ser celebrado: 12 de novembro. Ele é o tema da segunda edição da série “Biomas”, da Agência Senado, que em sua primeira publicação apresentou a situação do bioma Amazônia diante da devastação e da extrema alteração climática. Apontado pelo IBGE como o menor de todos os biomas brasileiros, ocupa cerca de 150 mil quilômetros quadrados no Brasil, quase 1,8% da área total mapeada [o maior é a Amazônia com 49,3%], o Pantanal divide-se entre os estados de Mato Grosso do Sul (65%) e Mato Grosso (35%). O bioma, porém, está presente também em países fronteiriços como Bolívia e Paraguai, apesar da pouca extensão.
As inundações caracterizam e determinam a fisionomia singular da região. Baías, lagoas temporárias ou permanentes, repletas de plantas aquáticas submersas ou flutuantes chamam a atenção, especialmente de turistas, que não raro buscam o bioma para se deslumbrarem com imensos ninhais e com a grande densidade de animais por quilômetros quadrados, destacando-se espécies como tuiuiús, araras, tucanos, jacarés, onças-pintadas, tamanduás, cervos, veados, sucuris, capivaras e ariranhas.
As chuvas no Pantanal caem geralmente de outubro a março, formando imensas áreas alagáveis, que nos demais meses drenam-se por toda a planície. Mas o curso de inundação anual — que antes se dividia em fases bem pronunciadas de cheia e seca — tem sofrido alterações nos últimos anos, com a acentuada diminuição das chuvas e o aumento da temperatura. Essas mudanças trouxeram um forte impacto na região.
O bioma passou a enfrentar secas intensas e prolongadas, com incêndios florestais que destruíram cerca de cinco milhões de hectares entre 2019 e 2021, com sérios danos a fauna e a flora da região. Pesquisadores estimam que 30% da área total tenha sido afetada. Esse desequilíbrio climático-ambiental colocou o Pantanal entre os biomas ameaçados e seu futuro tornou-se incerto. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam que já houve a conversão, para exploração econômica, de 19,3% da área nativa do Pantanal. Esse percentual é relevante para uma Área de Uso Restrito, ou seja, pelo Código Florestal (Lei 12.651/2012), aquela considerada sensível, cuja exploração requer a adoção de boas práticas agropecuárias e florestais.
Diante de um quadro dessa gravidade, o Senado começou a debater há cerca de três anos um projeto que institui o Estatuto do Pantanal (PL 5.482/2020). De iniciativa do senador Wellington Fagundes (PL-MT), o projeto prevê disciplinar a proteção, a conservação, a restauração e a exploração sustentável do bioma. Estabelece abrangência, definições e diretrizes para tanto. A proposta congrega a aplicação da legislação ambiental com ações voltadas para a sua sustentabilidade. O objetivo é ter políticas integradas que melhorem a qualidade de vida do pantaneiro e das comunidades locais, a partir da inclusão social e da redução de desigualdades regionais.
Uma das providências previstas é a proteção dos recursos hídricos e das nascentes — alguns rios já sofrem forte assoreamento, a exemplo do Taquari. Além disso, estão listados no Estatuto o plano de manejo integrado do fogo, a recuperação e a utilização das áreas desmatadas e degradadas, como recomposição da cobertura vegetal nativa e manejo dos sistemas agropastoris. O senador Jayme Campos (União-MT), relator do projeto na Comissão de Meio Ambiente (CMA), afirma que procurou ouvir “a todos” para produzir o seu relatório, entre eles indígenas e quilombolas da região, ambientalistas e proprietários rurais. Jayme Campos entregou a última versão do seu relatório no dia 6 de novembro e o texto já está pronto para ser votado pela CMA.
O professor e pesquisador do Instituto de Biociências da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Geraldo Alves Damasceno Junior explica que o Pantanal é altamente influenciado pelas formações vizinhas — Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica e Chaco. Isso o torna um filtro:
— Como a região inunda bastante e pega fogo, só entram aqui as espécies que possuem características para conseguir se defender desses dois fatores ecológicos muito fortes.
Os lugares que inundam bastante e também se incendeiam tendem a apresentar vegetação mais campestre, em especial no período mais seco. Após a inundação, reaparece a flora aquática que fica guardada num banco de sementes natural, em sistemas subterrâneos dormentes que se ativam com as inundações.
Já onde há menos inundação, aparecem a vegetação arbórea de mata ciliar e as florestas estacionais, como as de Cerrado, principalmente na região da Nhecolândia, uma das oito sub-regiões do Complexo, no Pantanal Sul (MS), localizando-se entre os rios Negro e Taquari. Há ainda os capões, manchas de mata arredondadas que se acham no meio do campo, onde por vezes encontra-se a vegetação de floresta estacional decidual, mais ligada com a Mata Atlântica ou a Amazônia, dependendo da área. Às margens dos rios, é preciso visualizar as matas ciliares.
As paisagens pantaneiras também apresentam formações monodominantes, onde uma espécie de árvore ou herbácea predomina em uma determinada região. Ao todo, segundo o professor, já foram catalogadas 27 espécies com essas formações, como carandazal (carandá) e paratudal (ipê-amarelo).
A formação da planície de sedimentação do Pantanal ocorreu junto com a formação dos Andes. Os sedimentos que estão na superfície são considerados recentes — de 30 a 40 mil anos — e cobrem boa parte do bioma.
Diferentemente do que se imagina, o fogo não é inimigo do bioma, mas os incêndios florestais descontrolados, sim. Trabalhos apontam que existe fogo no Pantanal há pelo menos 12 mil anos. Em uma dinâmica temporária, a inundação e o fogo, com efeitos em separado, funcionam como filtros ecológicos.
— Os sítios arqueológicos no Pantanal têm cerca de oito mil anos, quer dizer que tem cerca de quatro mil anos de fogo no Pantanal registrados sem presença humana. O Pantanal faz parte de um conjunto de ecossistemas que são amigos do fogo. De uma maneira em geral, a flora do Pantanal reage bem [à combustão], porque há mecanismos que as plantas usam para se proteger — ensina o professor da UFMS.
Muitas árvores têm características semelhantes às plantas do Cerrado, que têm cascas grossas e, portanto, conseguem sobreviver.
— Outras têm compostos fenólicos nas cascas que as protegem do fogo. Das que perdem a parte aérea, muitas espécies conseguem rebrotar a partir das raízes. Mas tudo isso leva um bom tempo para ocorrer: podem passar mais do que 20 anos para recuperar as características físicas que tinham antes. Mas não há registros de extinção de espécies pelo fogo — afirma Damasceno Junior.
Conforme levantamento oficial do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro [braço do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima responsável pelo registro nacional], há cerca de 1,8 mil espécies de flora e funga (fungos) catalogadas no bioma, sendo que pouquíssimas são endêmicas do Pantanal.
O pesquisador do Laboratório de Vida Selvagem da Embrapa Pantanal Walfrido Moraes Tomas alerta que os incêndios catastróficos, como os registrados principalmente em 2020, são resultado de uma conjunção de fatores em escalas diversas: a primeira é global, causada pelas fortes alterações climáticas e aquecimento do oceano Atlântico, o que afeta a circulação de ventos e, consequentemente, a formação de chuvas para toda a América do Sul.
— Não há dúvida alguma de que tudo que está acontecendo em qualquer lugar do mundo já é influenciado pelas mudanças climáticas — afirma Tomas.
Numa segunda escala, a continental, o desmatamento na Amazônia também contribui para a redução das quedas pluviais, atingindo em cheio a bacia hidrográfica que forma o Pantanal. Os rios pantaneiros têm suas nascentes em outros biomas. Da Amazônia, as águas chegam à planície pantaneira por meio dos rios voadores, como são chamados os cursos de água atmosféricos.
— Aí você chega na escala regional. Temos as alterações da própria bacia do Rio Paraguai, que é a bacia que forma o Pantanal. Os rios todos nascem fora do Pantanal e descem pra cá. O desmatamento das cabeceiras mexe com os mananciais de água, ocorre produção de menos água na região inteira da bacia. Aumenta-se a erosão e o assoreamento do rio, perdem-se áreas úmidas. Essas áreas úmidas são drenadas para uso agrícola e da pecuária, na verdade. E quando se drena uma área úmida, a capacidade da bacia de reter água diminui, liberando aos poucos para dentro do Pantanal, que é uma área inundável — explica o especialista.
Os modelos de mudança climática para o Pantanal mostram que vai haver uma diminuição de 30% na média da chuva na bacia do Rio Paraguai, acrescenta o pesquisador da Embrapa.
— Para se ter ideia, em 2019 já tinha chegado a isso. Em 2020, a redução das chuvas ultrapassou 40% em relação ao previsto. E aí o que a gente teve foi seca extrema, porque as áreas que estavam inundadas no Pantanal secaram. Havia matéria orgânica de plantas, ondas de calor muito forte e muito vento. Foi uma combinação perfeita para incêndios catastróficos — recorda Tomas.
Por fim, ocorrem na escala local as ações humanas equivocadas, como a decisão de se atear fogo na época errada. Por isso, a saída, segundo os especialistas, é estimular o uso correto do fogo, na época certa, de forma a controlar a grande produção de biomassa vegetal.
De acordo com o professor Damasceno Junior, é preciso estabelecer limites para se continuar usando o fogo no Pantanal como instrumento de manejo, com planejamento para que esse evento não se torne incêndio.
— O fogo controlado é uma coisa. O incêndio pode queimar grandes extensões de áreas, pode destruir pontes, casas, matar pessoas e animais. Esse é o incêndio que ninguém deseja. Mas o fogo controlado, sim, fazendo de uma maneira que os animais consigam fugir com áreas delimitadas e com períodos adequados. Aí é um instrumento benéfico de manejo.
Eliminar o fogo desse ecossistema só irá piorar a situação, reforça Tomas. Para o pesquisador, quando se deixa de queimar a savana, há aumento da densidade de plantas e arbustos, o que será combustível para incêndio nos dias de eventos climáticos extremos.
— Foi o que aconteceu com o Pantanal, que saiu de um período de 15 anos de muitas cheias, bastante intensas. E isso favoreceu o crescimento de plantas e produziu uma biomassa imensa nas áreas mais baixas.
Enquanto a flora pantaneira é resiliente ao fogo, a fauna não consegue escapar sem danos dos incêndios florestais. Pelo menos 17 milhões de vertebrados morreram diretamente por causa do fogo, conforme estimativa da rede de pesquisa coordenada pelo pesquisador Tomas, da Embrapa Pantanal, e pelo ICMBio. Desse total, 16 milhões seriam animais de pequeno porte e quase um milhão de médio e grande porte. Cenas chocantes de animais carbonizados ou mortos pela inalação da fumaça rodaram o mundo em 2020.
Os especialistas asseguram que essa estimativa é, na realidade, muito maior. Com base na densidade de espécies conhecidas, concluiu-se que pelos menos mais 65 milhões de vertebrados e quatro bilhões de invertebrados foram afetados pelos efeitos indiretos.
Os animais, em geral, estão acostumados a fugir de um tipo de fogo normal, o de superfície. Mas os últimos incêndios catastróficos reuniram muitas dificuldades ao mesmo tempo: os animais que se resguardaram nas copas das árvores foram atingidos pelas labaredas ou morreram intoxicados, os que se esconderam no solo, acabaram cozidos e aqueles que normalmente correm e pulam a linha de fogo, geralmente de um metro, como onças e veados, encontraram faixas de cem metros e acabaram por cair dentro do fogo. Muitos afundaram em brasas.
— Nós temos três efeitos sobre a fauna quando da ocorrência dos incêndios: um, direto, que é o que mata o animal. O indireto transforma o ambiente, o animal fica sem recurso para alimentação, sem recurso para se esconder de predadores ou para diminuir a temperatura do corpo, achar uma sombra, alguma coisa assim. Esse efeito é de longo prazo. O terceiro chamamos de efeito evolutivo, que tem a ver com o aprendizado das espécies em relação ao fogo — explica o analista ambiental do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap/ICMBio) Christian Niel Berlinck.
Para o analista, é preciso investir em levantamentos básicos de campo, de modo que se tenha os cálculos mais precisos e não apenas um retrato:
— Eu não sei como era antes para eu poder estimar como vai ficar depois. Esse é o nosso grande problema.
Apesar da dimensão do estrago, que atingiu 30% do Pantanal, o que gerou um dano relativamente significativo à fauna, é preciso comemorar os 70% que foram preservados. Até o momento, não há registros de extinção de animais por conta dos incêndios. Mas algumas espécies, como o sagui-de-rabo-preto e a cobra aquática endêmica Helicops boitatá, parecem ter diminuído sua presença abundante onde antes eram facilmente avistados.
— No Pantanal há uma densidade animal e vegetal muito grande, em um mosaico de ambientes muito rico. Temos muitas espécies e muitos indivíduos por espécie. Agora temos um processo de reocupação dessas áreas pelas espécies que antes existiam — acrescenta Berlinck.
Pesquisadores da Embrapa Pantanal fazem o monitoramento de diversas espécies desde 1991, quando iniciaram a contagem de jacarés, capivaras, cervos do Pantanal, veados campeiros e tuiuiús em ninhos ativos. O tuiuiú, por sinal, é a maior ave da planície pantaneira e símbolo do bioma e geralmente tem seus filhotes em árvores com mais de dois metros de altura.
— Isso é um trabalho que nos ajuda a responder questões sobre o impacto nos ecossistemas. A gente não consegue ver tudo, contar tudo, mas nessa escala grande, esses animais [dos quais] a gente tem feito contagem, tem dado resultado bem interessante por serem dependentes de áreas inundáveis — explica o pesquisador da Embrapa.
No início dos trabalhos, os pesquisadores contabilizaram cerca de 20 mil ninhos de tuiuiús. A estimativa desse ano é de que haja pouco mais de oito mil ninhos ativos.
— É porque o Pantanal está bem mais seco. O tuiuiú é um animal que, quando o Pantanal enche, tem comida em abundância. Se nesse ano não encheu tanto, boa parte dos ninhos não vai produzir filhotes — avalia Tomas.
Já para outros bichos, como o cervo do Pantanal, a população não diminui ano a ano, mas ao longo de todo um período. Enquanto nos anos 90, a população estimada era de 45 mil, atualmente a expectativa é de que esse número tenha caído à metade.
— É um processo mais complicado, porque você precisa ter muito tempo seco para a população de cervos diminuir — observa o pesquisador da Embrapa.
O Sistema de Avaliação do Risco de Extinção da Biodiversidade (Salve) do ICMBio aponta que, das 1.390 espécies avaliadas (todos os vertebrados e alguns invertebrados), 32 estão em categorias de ameaça.
São cinco espécies na categoria “em perigo”, como as aves água-cinzenta, maçarico-rasteirinho e piolinho-do-grotão. Outras 27 estão na categoria “vulnerável”: tamanduá-bandeira, onça-pintada, lobo-guará, gato-azul, tico-tico-de-máscara-negra, maçarico-de-papo-vermelho e besouro-rola-bosta Não há espécies no momento descritas entre as criticamente em perigo.
Por meio de projetos de conservação e monitoramento, alguns animais deixaram ao longo dos anos a lista dos ameaçados. É o caso da arara-azul-grande, que há 34 anos tem sido objeto principal do Projeto Arara Azul, criado e coordenado pela professora e pesquisadora Neiva Guedes, presidente do Instituto Arara Azul.
A espécie é a mais suscetível das grandes araras, o que se explica principalmente por duas peculiaridades: ser muito especializada na questão alimentar (ingere basicamente dois tipos de frutos durante toda a sua vida) e se reproduzir em cavidades, seja em troncos de árvores vivas, geralmente manduvi e ximbuva, seja em falhas de paredões rochosos.
Diante disso, os incêndios de 2019 a 2021 foram extremamente severos para a continuidade da recuperação da espécie, significativamente afetada. No refúgio ecológico Caiman (MS), onde o projeto tem cadastrados 110 ninhos entre naturais e artificiais, 49% foram atingidos em 17 dias de fogo no ano de 2019.
— Os ninhos foram afetados diretamente pelo fogo, queimando, perdendo ovos e filhotes. Às vezes o fogo não chegou no local, não queimou naquela área, mas a fumaça inalada pelos filhotes acabou os levando a óbito. Então, foi um efeito devastador para as araras. E considerando que elas comem a castanha de apenas duas palmeiras, o item alimentar também foi prejudicado — relata Neiva.
A pesquisadora acredita que após os incêndios essa espécie volte à lista dos ameaçados.
Assim que possível, o projeto trabalhou para a recuperação e instalação de novos ninhos, o que possibilitou nova postura de ovos por alguns animais, apesar das dificuldades com a alimentação atingida pelo fogo.
— Os animais começaram a ter lesões na pele, a ter baixa resistência. Conseguimos resolver alguns danos: os animais sobreviveram, mas outros foram a óbito. Mas não só as araras estavam passando fome, os outros bichos também. E o que aconteceu? Animais que não comiam arara começaram a comer porque estavam passando fome também, entre eles o macaco-prego e a irara, um mustelídeo, bem parecido com a ariranha, que é bem voraz — conta a pesquisadora.
Os efeitos do fogo, segundo a presidente do Instituto, podem ser sentidos até hoje, pois alteraram muito a relação entre as espécies, com aumento da predação, da mortalidade e da disputa pelos ninhos.
O problema é ainda pior diante das alterações climáticas, que provocam uma onda preocupante de elevação da temperatura.
— A gente teve agora recentemente as piores ondas de calor aqui no Brasil, e o Centro-Oeste foi bastante atingido. Estava em campo em setembro, justamente no período que estavam eclodindo os ovos de araras, exatamente na semana dos calores de quase 46ºC. O que aconteceu? Os bichos não resistiram. Era muito quente, muito seco e eles são muito delicados — lembra Neiva.
Em 1990, quando o projeto foi iniciado, a estimativa era de que havia 1,5 mil araras azuis no Pantanal, número que triplicou e chegou a cinco mil em 2009. Esse resultado foi obtido a partir do manejo, instalação de ninhos artificiais (mais de 400), acompanhamentos de outros 400 ninhos naturais e, sobretudo, segundo Neiva, pelo envolvimento da população local. Os fazendeiros e funcionários são considerados parceiros importantes do projeto, um dos mais longevos do país na área animal, que também conta com parcerias na iniciativa privada.
Além da perda para o fogo, os animais são alvo de uma prática que tem retornado com força à região do Pantanal: o tráfico de animais, especialmente destinado ao mercado asiático. Recentemente, mais de uma centena de ovos de aves foram apreendidos, sendo a maioria de araras e tucanos.
— O tráfico que tinha diminuído muito voltou aos poucos. E agora está exacerbado. Estão apreendendo ovos que a gente nem tem conhecimento da origem. Ou seja, estamos num momento muito difícil — alerta a pesquisadora, que acrescenta a preocupação ainda com a retirada de penas dos animais para a confecção de ornamentos e venda ilegal.
Ações do Senado
Em meio aos problemas que põem em risco o bioma, o autor do projeto do Estatuto do Pantanal, senador Wellington Fagundes, defende que a norma irá proporcionar ações integradas entre os estados pantaneiros.
“A apresentação de um projeto de lei que institua uma norma geral de proteção ao bioma Pantanal, a qual pode ser denominada Estatuto do Pantanal, não apenas possui fundamentação constitucional, mas também é meritória, uma vez que uma legislação específica de proteção ao Pantanal, ao regular conservação, proteção, restauração e exploração sustentável do bioma, cria princípios e um regime jurídico próprio ao bioma, que possibilitará maior segurança jurídica e ações integradas e coordenadas pelos estados que fazem parte da região”, sustenta Wellington na justificação do projeto.
Com parecer favorável à proposta, o senador Jayme Campos (União-MT), relator da matéria na CMA, disse que “produziu um relatório baseado no equilíbrio”:
— Até porque, preservar não significa abandonar, significa cuidar bem do bioma. E é exatamente o que todos desejam: cuidar do Pantanal, com os governos envolvidos atuando de forma conjunta, não apenas na fiscalização, como também no desenvolvimento de um programa amplo de educação ambiental e de investimentos em saneamento básico.
Uma das propostas do Estatuto é a criação de um selo “Pantanal Sustentável” para produtos e atividades originárias do bioma. A ideia é valorizar e estimular a produção e a prática de atividades turísticas e culturais, além de identificar boas práticas que resultem na preservação dos recursos naturais.
O senador Nelsinho Trad (PSD-MS) avalia que aprovar um marco normativo geral para o bioma garante segurança jurídica e parâmetros mínimos para a legislação estadual:
— O projeto do Estatuto estabelece princípios e diretrizes para conciliar a proteção ambiental e o desenvolvimento socioeconômico no bioma, de maneira a garantir que as atividades econômicas na região não resultem em degradação do meio ambiente.
Para obter recursos, Jayme Campos apresentou esse ano o PL 1.162/2023. O projeto destina verbas de fundos ambientais climáticos para projetos e iniciativas de bioeconomia. O senador enfatiza que o Pantanal é habitado por grande número de povos, cada qual com sua cultura e seus costumes:
— O projeto que apresentamos fortalece os objetivos para o bom uso do bioma, ao priorizar iniciativas da bioeconomia, que abrangem um conjunto agregado de atividades econômicas associadas a produtos e processos biológicos e que resultam em diversos benefícios para a sociedade e para o meio ambiente. Trata-se, portanto, da interiorização de uma economia baseada na floresta em pé, que promova a proteção do regime climático, mas também a geração de empregos e de renda para brasileiras e brasileiros que residem na Amazônia Legal e no bioma Pantanal. Isto é usar recursos para dar oportunidades para essa gente que lá habita.
Além de apostar no ecoturismo, voltado à contemplação das belezas e peculiaridades do bioma, e no turismo de pesca, que atrai milhares de praticantes todos os anos para a região, o pesquisador da Embrapa Walfrido Tomas reforça a visão de que o desenvolvimento econômico pode e deve caminhar junto com a preservação do meio ambiente. O pesquisador diz que é preciso valorizar a pecuária tradicional. Só para se ter ideia, o Mato Grosso é o estado com o maior rebanho bovino do Brasil, com quase 35 mil cabeças, cerca de 15% do gado existente no país, conforme o último censo do IBGE, de 2022. Embora não haja estatísticas seguras, segundo os especialistas, sabe-se que uma parte desse rebanho está no Pantanal. — Pelo menos 80% das propriedades rurais tem boi em pastagem nativa. Esse é um serviço que o ecossistema produz de graça, com um valor econômico brutal. A valorização da pecuária tradicional é a melhor estratégia de conservação do Pantanal hoje — avalia Tomas. Para o analista ambiental Christian Berlinck, é preciso ter um ambiente o mais diversificado possível, com nichos conectados entre si. — Então na hora em que se pratica monocultura, quebra-se essa conexão. O importante é fazer com que esses nichos se comuniquem. Por isso que a pecuária extensiva e tradicional do Pantanal é linda nesse ponto, porque o gado permeia por esses ambientes e a fauna permeia junto. É muito comum você entrar numa pastagem e ver um monte de bicho junto associado ao gado — reforça Berlinck.
– Agência Senado